No contexto pentecostal, no
que diz respeito aos dons espirituais, sempre houve a discussão sobre a
possibilidade ou não, de se perder os dons concedidos pelo Espírito. Para
cooperar com essa discussão, resolvemos escrever este artigo, onde a ideia é
esclarecer alguns fatos sobre a questão.
Em
primeiro lugar, entendo ser importante relembrarmos o conceito de “dom de Deus”.
O termo grego para “dom” no sentido em que estamos tratando é charisma.
Barclay afirma que no Novo Testamento a palavra ocorre dezessete vezes,
catorze nas epístolas paulinas gerais, duas nas pastorais e uma vez em 1 Pedro.
O termo, segundo Barclay[1];
(1) É usado para aquilo que podemos chamar de “dádivas da graça”, e envolve
também os charismata (dons espirituais), conforme 1 Co 12.31.
(2) É usado para “graça e perdão” de Deus na situação em que o julgamento e
a condenação teriam sido a perfeita justiça (Rm 5.15-16; Rm 6.23).
(3) É usado em relação aos “dotes naturais” que o homem possui (1 Co 7.7; 1
Pe 4.10).
(4) É usado como “dom que é implantado no homem quando é ordenado ao
ministério” (1 Tm 4.14; 2 Tm 1.6).
(5) É especialmente utilizado para todos “os dons especiais que podem ser
exercidos no serviço da Igreja” (Rm 12.6-8; 1 Co 12.8-10, 28-30).
A ideia básica da palavra é a de um dom
gratuito e imerecido, alguma coisa dada ao homem sem trabalho nem merecimento,
algo que vem da graça de Deus e que nunca poderia ter sido realizado, galgado
ou possuído pelo esforço do próprio homem.
Não apenas a graça, mas também a
soberania de Deus se relaciona com a concessão dos dons (1 Co 12.11; Ef 4.11;
Atos 13.1-4; 20.24, 28; 2 Tm 1.8-11)
Para efeito de estudo (didática),
algumas terminologias e classificações são utilizadas para descrever os dons do
Espírito Santo, tais como “dons espirituais”, “dons sobrenaturais”, “dons
ministeriais”, “dons de liderança”, “dons de serviço”, etc. Entendo ser
importante afirmar que em última instância todos os dons do Espírito são
“ESPIRITUAIS” (pneumatikôn)e “MINISTERIAIS” (diakonían), pelo
simples fato de que todos são concedidos pelo Espírito e para o
serviço ao próximo em todas as suas variadas formas ou
manifestações.
Existe ainda o equívoco de reduzir os
dons do Espírito a apenas nove, com base somente no texto de 1 Coríntios
12.8-10. É preciso considerar outras listas, tais como a de Romanos 12.6-8,
Efésios 4.11, e ainda 1 Co 12.28-30.
A própria salvação é um dom espiritual
de Deus, pois implica na ação graciosa e regeneradora operada pelo
Espírito, mediante a sua Palavra (Jo 1.13; 3.1-8; Rm 8.3; 2 Co 5.17; Ef
4.23-24; Tg 1.18; 1 Pe 1.23):
Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom (charisma) gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus,
nosso Senhor. (Rm 6.23).
Se a salvação, condição essencial para o
recebimento em forma de concessão dos demais dons operados pelo Espírito, que conforme
a teologia pentecostal pode ser perdida, o que não dizer dos dons que dela
dependem? Como não podemos perder um dom do Espírito, se afirmamos ser a
própria salvação condicional (influência da teologia arminiana), com base em
textos como Mateus 24.13; 25.1-13; 14-30; Hebreus 3.12-19; 12.14; Apocalipse
3.11? Caso mudemos de posicionamento, resta-nos adotarmos a teologia reformada calvinista
com a sua doutrina da predestinação e seus desdobramentos. Afirmar que
recebendo os dons os teremos para sempre, não seria o mesmo que afirmar que uma
vez salvos, somos salvos para sempre?
Se a Bíblia alerta quanto ao não “apagar”
ou “extinguir” (gr. sbénnyte) o
Espírito (1 Ts 5.19), que significa literalmente “apagar o fogo ou a chama”, “oprimir
a ação ou deter a ação”[2], não podemos, junto
com o “apagar” ou “extinguir” o Espírito fazermos o mesmo com os dons que dele
procede? Minha resposta é sim. Na realidade, a Bíblia nos adverte claramente sobre
a possibilidade de perdermos coisas (dons, dádivas, bens, responsabilidades, etc.)
que procedem de Deus (Jz 16.15-20; 1 Sm 15.27-28; 16.1; Jó 1.21; Sl 51.11; Hb
6.4-8; Ap 2.5).
Em segundo lugar, o que dizer sobre o
significado do texto abaixo, utilizado por muitos para defender a ideia de que
os dons espirituais não podem ser perdidos?
Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento. (Rm 11.29, ARC)
[...] porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis. (Rm 11.29, ARA)
Os comentaristas bíblicos são
praticamente unânimes em afirmar que o referido versículo está num contexto,
onde a eleição de Israel como povo de Deus está sendo tratada por Paulo. Não há
referência alguma aos dons espirituais. Além disso, a ênfase do texto está na
imutável fidelidade de Deus, no fato de que Deus não muda de opinião a respeito
dos seus dons, apesar do homem poder negligenciá-los e perdê-los. Stanley
Horton, teólogo pentecostal, considera que os dons:
Nunca são nossos no sentido de não precisarmos do Espírito Santo, pela
fé, para cada expressão desses dons. Nunca se tornam parte da nossa própria
natureza, ao ponto de não perdê-los, de serem tirados de nós.[3]
A Bíblia de Estudo Pentecostal,
publicada pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus, editora oficial da
denominação, em sua nota de rodapé sobre Romanos 11.29 é enfática:
Estas
palavras se referem aos privilégios de Israel mencionados em 9.4, 5 e 11.26. O
contexto desta passagem tem a ver com Israel e os propósitos de Deus para
aquela nação e não aos dons espirituais à vocação ministerial relacionados com
a obra do Espírito Santo na igreja (cf. 12.6-8; 1 Co 12).[4]
Diante desta breve
exposição, que não trata o tema de forma exaustiva, mas que busca apresentar
fundamentos razoáveis para o entendimento de que os dons do Espírito (qualquer um
deles) podem ser perdidos, esperamos contribuir de alguma forma para a
discussão sobre o assunto.
[2]
HAUBECK, Wilfrid; SIEBENTHAL, Heinrich Von. Nova chave lingüística do Novo Testamento
grego. São Paulo: Hagnos/Targumim, 2009, p. 1152.
[3]
HORTON, Stanley M. A doutrina do Espírito
Santo no Antigo e Novo Testamento. 12 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2012, p.
230.
[4]
Bíblia de Estudo Pentecostal.
Flórida, EUA: CPAD, 1995, p. 1721.
FONTE: Blog do Pr. Altair Germano