quarta-feira, 23 de abril de 2014

OS DONS ESPIRITUAIS PODEM SER PERDIDOS?

 
No contexto pentecostal, no que diz respeito aos dons espirituais, sempre houve a discussão sobre a possibilidade ou não, de se perder os dons concedidos pelo Espírito. Para cooperar com essa discussão, resolvemos escrever este artigo, onde a ideia é esclarecer alguns fatos sobre a questão.

Em primeiro lugar, entendo ser importante relembrarmos o conceito de “dom de Deus”. O termo grego para “dom” no sentido em que estamos tratando é charisma. Barclay afirma que no Novo Testamento a palavra ocorre dezessete vezes, catorze nas epístolas paulinas gerais, duas nas pastorais e uma vez em 1 Pedro. O termo, segundo Barclay[1];

(1)  É usado para aquilo que podemos chamar de “dádivas da graça”, e envolve também os charismata (dons espirituais), conforme 1 Co 12.31.
(2)  É usado para “graça e perdão” de Deus na situação em que o julgamento e a condenação teriam sido a perfeita justiça (Rm 5.15-16; Rm 6.23).
(3)  É usado em relação aos “dotes naturais” que o homem possui (1 Co 7.7; 1 Pe 4.10).
(4)  É usado como “dom que é implantado no homem quando é ordenado ao ministério” (1 Tm 4.14; 2 Tm 1.6).
(5)  É especialmente utilizado para todos “os dons especiais que podem ser exercidos no serviço da Igreja” (Rm 12.6-8; 1 Co 12.8-10, 28-30).

A ideia básica da palavra é a de um dom gratuito e imerecido, alguma coisa dada ao homem sem trabalho nem merecimento, algo que vem da graça de Deus e que nunca poderia ter sido realizado, galgado ou possuído pelo esforço do próprio homem.

Não apenas a graça, mas também a soberania de Deus se relaciona com a concessão dos dons (1 Co 12.11; Ef 4.11; Atos 13.1-4; 20.24, 28; 2 Tm 1.8-11)

Para efeito de estudo (didática), algumas terminologias e classificações são utilizadas para descrever os dons do Espírito Santo, tais como “dons espirituais”, “dons sobrenaturais”, “dons ministeriais”, “dons de liderança”, “dons de serviço”, etc. Entendo ser importante afirmar que em última instância todos os dons do Espírito são “ESPIRITUAIS” (pneumatikôn)e “MINISTERIAIS” (diakonían), pelo simples fato de que todos são concedidos pelo Espírito  e para o serviço  ao próximo em todas as suas variadas formas ou manifestações.

Existe ainda o equívoco de reduzir os dons do Espírito a apenas nove, com base somente no texto de 1 Coríntios 12.8-10. É preciso considerar outras listas, tais como a de Romanos 12.6-8, Efésios 4.11, e ainda 1 Co 12.28-30.

A própria salvação é um dom espiritual de Deus, pois implica na ação graciosa e regeneradora operada pelo Espírito, mediante a sua Palavra (Jo 1.13; 3.1-8; Rm 8.3; 2 Co 5.17; Ef 4.23-24; Tg 1.18; 1 Pe 1.23):

Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom (charisma) gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus, nosso Senhor. (Rm 6.23).

Se a salvação, condição essencial para o recebimento em forma de concessão dos demais dons operados pelo Espírito, que conforme a teologia pentecostal pode ser perdida, o que não dizer dos dons que dela dependem? Como não podemos perder um dom do Espírito, se afirmamos ser a própria salvação condicional (influência da teologia arminiana), com base em textos como Mateus 24.13; 25.1-13; 14-30; Hebreus 3.12-19; 12.14; Apocalipse 3.11? Caso mudemos de posicionamento, resta-nos adotarmos a teologia reformada calvinista com a sua doutrina da predestinação e seus desdobramentos. Afirmar que recebendo os dons os teremos para sempre, não seria o mesmo que afirmar que uma vez salvos, somos salvos para sempre?

Se a Bíblia alerta quanto ao não “apagar” ou “extinguir” (gr. sbénnyte) o Espírito (1 Ts 5.19), que significa literalmente “apagar o fogo ou a chama”, “oprimir a ação ou deter a ação”[2], não podemos, junto com o “apagar” ou “extinguir” o Espírito fazermos o mesmo com os dons que dele procede? Minha resposta é sim. Na realidade, a Bíblia nos adverte claramente sobre a possibilidade de perdermos coisas (dons, dádivas, bens, responsabilidades, etc.) que procedem de Deus (Jz 16.15-20; 1 Sm 15.27-28; 16.1; Jó 1.21; Sl 51.11; Hb 6.4-8; Ap 2.5).

Em segundo lugar, o que dizer sobre o significado do texto abaixo, utilizado por muitos para defender a ideia de que os dons espirituais não podem ser perdidos?

Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento. (Rm 11.29, ARC)

[...] porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis. (Rm 11.29, ARA)

Os comentaristas bíblicos são praticamente unânimes em afirmar que o referido versículo está num contexto, onde a eleição de Israel como povo de Deus está sendo tratada por Paulo. Não há referência alguma aos dons espirituais. Além disso, a ênfase do texto está na imutável fidelidade de Deus, no fato de que Deus não muda de opinião a respeito dos seus dons, apesar do homem poder negligenciá-los e perdê-los. Stanley Horton, teólogo pentecostal, considera que os dons:

Nunca são nossos no sentido de não precisarmos do Espírito Santo, pela fé, para cada expressão desses dons. Nunca se tornam parte da nossa própria natureza, ao ponto de não perdê-los, de serem tirados de nós.[3]

A Bíblia de Estudo Pentecostal, publicada pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus, editora oficial da denominação, em sua nota de rodapé sobre Romanos 11.29 é enfática:

Estas palavras se referem aos privilégios de Israel mencionados em 9.4, 5 e 11.26. O contexto desta passagem tem a ver com Israel e os propósitos de Deus para aquela nação e não aos dons espirituais à vocação ministerial relacionados com a obra do Espírito Santo na igreja (cf. 12.6-8; 1 Co 12).[4]

Diante desta breve exposição, que não trata o tema de forma exaustiva, mas que busca apresentar fundamentos razoáveis para o entendimento de que os dons do Espírito (qualquer um deles) podem ser perdidos, esperamos contribuir de alguma forma para a discussão sobre o assunto.


[1] BARCKAY, William. Palavras Chaves do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000, p 40.
[2] HAUBECK, Wilfrid; SIEBENTHAL, Heinrich Von. Nova chave lingüística do Novo Testamento grego. São Paulo: Hagnos/Targumim, 2009, p. 1152.
[3] HORTON, Stanley M. A doutrina do Espírito Santo no Antigo e Novo Testamento. 12 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2012, p. 230.
[4] Bíblia de Estudo Pentecostal. Flórida, EUA: CPAD, 1995, p. 1721.